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de dezembro. Este ano tive a vontade de dar à minha família e a mim mesmo um
Natal diferente de todos os outros. Em vez de ficarmos em casa a
empanturrar-nos de comida e guloseimas, optei por pegar no carro e ir com os
meus amores, por este nosso belo país, sem destino traçado.
Saímos cedo para aproveitarmos ao
máximo o dia. À nossa volta só se via um manto branco provocado por um valente
nevão que caíra dois dias antes. Esta imagem fez sempre parte do meu imaginário
desde criança. Como vivo na grande cidade, nunca imaginei ter o privilégio de
ter um Natal pintado de branco. Que belo presente este.
O ambiente no carro é excelente. A
alegria, o amor e a paz transbordam em todos nós. Os meus filhos estão super
felizes por terem um dia assim; a minha esposa, essa, tem um brilho nos olhos
como eu nunca tinha visto em muitos anos de casamento. O autorrádio, esse,
ajuda a essa harmonia tocando só músicas alusivas à quadra que estamos a viver.
As horas iam passando e a fome
apertava. Decidi parar no próximo café que encontrasse aberto para tomarmos um
pequeno-almoço bem reforçado, pois o dia prometia.
Paramos numa aldeia típica. Onde as
casas eram todas feitas em pedra de xisto. A poucos metros de distância, por
cima de uma porta, vimos um letreiro “Taberna do tio Joaquim”. Olhamos uns para
os outros e arriscamos entrar. Que belo sitia aquele que acabávamos de
descobrir. Ali respirava-se ao Portugal genuíno, onde a ruralidade faz parte do
código genético do país.
Ao
fundo, por trás do balcão, tínhamos um senhor cuja idade deveria rondar os 70 e
muitos anos.
– Entrem, entrem! Fiquem à vontade.
A minha casa é a vossa casa. – diz o senhor com a maior das simpatias.
Suspeitávamos que ali não se ia
comer um pequeno-almoço à qual estávamos habituados no nosso dia-a-dia na
cidade. Sentamo-nos numas das mesas de madeira que existia naquele espaço, não
deviam ser mais que cinco mesas.
O senhor aproximava-se de nós.
– Muito bom dia. O que é que os meus
amigos vão querer? – pergunta gentilmente.
– Estamos todos com fome. Andamos em
viagem há cerca de quatro horas e ainda não tomamos o pequeno–almoço – digo eu
com um sorriso para o senhor que poderia ser meu avô –. O que se pode comer
aqui?
– Ora bem… vocês são esquisitos?
– Nada disso! – respondo.
– Então deixam que aqui o tio Quim
vos surpreenda?
Olho para a minha esposa, ela olha
para mim e respondemos ao mesmo tempo.
– Sim!
– Não demoro.
Sabíamos que estávamos a arriscar
mas a simpatia do senhor Joaquim inspirávamos confiança, tínhamos a certeza que
dali sairia algo bom.
Enquanto esperávamos pela nossa
primeira refeição do dia, pusemo-nos a apreciar com mais atenção o espaço que
nos envolvia. Tínhamos nas paredes, como decoração, muitos utensílios –
agrícolas, suponho eu – que nunca na vida imaginávamos que existiam nem
sabíamos para que serviam.
Não esperamos muito até que o senhor
Joaquim aparecesse com uma bandeja completamente cheia de iguarias. A
quantidade era tanta que foi necessário juntar outra mesa à nossa.
–
Ora bem. Quase tudo o que aqui veem são produtos feitos aqui em casa por nós.
Têm pão de centeio acabadinho de sair do forno e feito pela minha esposa;
queijo de ovelha feito por nós e com leite de ovelhas do nosso rebanho; doce de
figo, doce de ameixa e doce de abóbora, tudo feito pela minha esposa; leite da
nossa vaquinha Jerónima…
Mal
ouvimos o nome do animal, soltamos uma valente gargalhada.
–
Cevada cultivada, torrada e moída por mim; para terminar, um sumo de laranja
natural com fruta do meu pomar… a única coisa aqui que não é feita aqui é a
manteiga. Espero que gostem e que tenham um bom proveito. – continuou o senhor
Joaquim.
–
Muito obrigado. – dizemos nós.
Com
este leque de alimentos, poderíamos ficar com o estômago composto e com
capacidade para aguentar umas quatro horas até à próxima refeição. Era tudo
divinal.
Ao
fundo, ouvia-se a radiofonia. Creio eu que estava a dar o noticiário. O senhor
Joaquim aparece do nada e aumenta o volume do aparelho. Ouviu-se:
«Notícia
de última hora: Troika abandona de vez o nosso país. A crise foi finalmente
vencida e erradicada de vez . Governo, na voz do senhor Primeiro-Ministro,
prepara-se para fazer, dentro de uns instantes, um comunicado à Nação. A
qualquer momento, entraremos em direto de São Bento.»
Depois de ouvirmos a notícia ficamos
todos, sem exceção, irradiantes.
– Viva! Terei futuro no meu país e
já não necessitarei de emigrar! – rejubila o meu filho mais velho.
Mas era bom esperar para saber o que
o nosso principal governante tinha para dizer ao país.
Não foi preciso muito para que tal
acontecesse. A emissão radiofónica já estava a ser transmitida da residência
oficial do Primeiro-Ministro. O senhor Joaquim e a sua esposa aproximavam-se do
aparelho e prestavam toda a atenção do mundo.
«Portuguesas
e portugueses. Hoje vivemos um dia histórico para todos nós. É com o maior
orgulho que vos informo que a crise financeira que nos atormentou durante os
últimos anos, terminou. E posso garantir que foi de vez! A partir deste exato
momento, eu e os meus companheiros de governo, vamos iniciar a tarefa de vos
devolver tudo aquilo que vos foi retirado. Assim, estou em condições de vos
garantir que todos os ordenados, subsídios de férias e de Natal, as reformas
das pessoas mais penalizadas, serão repostos. Adianto também que faremos,
imediatamente, baixar os impostos tributados a todos aqueles que trabalham
honestamente e que nunca faltaram ao compromisso para com o Estado. Acabam-se
as taxas e sobretaxas de quem é denominado Classe Média, pois não há nenhum
país que consiga a prosperidade sem ter uma Classe Média forte. Vamos também
tomar medidas para que não haja a Classe Baixa e consequentemente os níveis de
desenvolvimento social no nosso país seja o maior exemplo no mundo em igualdade
de direitos entre todos os cidadãos. Todos terão direito a um sistema de saúde
universal de forma gratuita pois o direito à saúde não pode ser um luxo só para
alguns. O mesmo acontecerá com a escola. Todos terão direito a estudar e a ter
livros grátis até ao fim da escolariedade obrigatória que é de 12 anos; com
isto pretendemos que não haja abandono escolar e que todos possam estudar
independentemente de ser rico ou pobre. Aumentaremos o ordenado mínimo de forma
a que o valor atual seja multiplicado por três, originando melhores condições
de vida a quem mais trabalha e menos recebe. Criaremos condições para que os
cidadãos com deficiência tenham todas as condições para que possam viver de uma
forma mais justa e com uma maior justiça social; acusaremos criminalmente todos
os atos de descriminação para com estes dignos cidadãos e aqueles que tenham
uma orientação sexual diferente do que se achou tradicional; todos são pessoas
de plenos direitos. Acabaram-se as pensões de quem ocupou cargos políticos.
Acabou-se a corrupção e os jogos de interesses que roubaram milhões de euros ao
país. Apostaremos de novo nas atividades económicas que a União Europeia nos
retirou, designadamente: a industria transformadora, a agricultura, a pesca.
Não haverá mais subsídios para não se produzir. Vamos criar milhares de postos
de trabalho…»
Estava maravilhado com tudo o que
ouvia. O meu coração pulava de alegria. Finalmente o meu Portugal ia ser um
local digno e justo. Mas o discurso ainda não tinha terminado.
«Estas
são apenas algumas das medidas que a partir de hoje vamos por em prática. Vamos
deixar rapidamente de ser um país quase do terceiro mundo para passarmos a
ocupar os lugares cimeiros do desenvolvimento social. Não haverá mais
portugueses de primeira e portugueses de segunda. Somos todos cidadãos do mesmo
país. Aqueles que têm mais rendimentos terão de contribuir mais. Foi assim,
aliás, que conseguimos reequilibrar tão rapidamente a situação económica do
país. Os donos das grandes fortunas decidiram por bem ajudar o país a
erguer-se, ofereceram-se para pagar a maioria da nossa divida e regularizar de
vez as suas situações com o fisco e a Segurança Social. É assim que construímos
um país mais justo e melhor para todos. Obrigado.».
Todos pulamos de alegria e começamos
a cantarolar. O senhor Joaquim veio a correr até mim e deu-me um abraço forte e
emotivo. Finalmente íamos deixar de estar na miséria, iam desaparecer os casos
de fome que até aqui assombravam o país. Acabavam-se as injustiças sociais. Não
podíamos ter melhor prenda de Natal.
O tempo voava e a vontade de ir lá
para fora festejar era muita. Vou até ao balcão para pagar ao senhor Joaquim o
pequeno-almoço maravilhoso que ele nos preparou.
– Só por causa destas ótimas notícias
que acabamos de receber, eu ofereço a refeição que fizeram. Quero é que haja uma
condição: é que me venham visitar de quando em vez, pode ser? – propõe o senhor
que também estava visivelmente muito contente.
Na
minha boca era bem visível o sorriso de orelha a orelha. Aceitei a sua
proposta. Muito em breve voltaria ali para visitar Joaquim novamente. Alguém me
tocava com alguma firmeza no ombro. Era a minha esposa.
–
Querido, querido. Acorda! Está quase na hora. Temos que ir à Missa do Galo.
Sentia-me
meio perdido. Onde é que eu estava afinal? Que horas seriam mesmo? A Missa do
Galo é sempre à meia-noite…
–
Estavas a sonhar com o quê? É que ouvi-te a falar e rir muito…
Já
mais desperto, olhei à minha volta, vi onde estava e pensei: “Afinal tudo
aquilo que vivi, não passou de um mero sonho. Um Sonho de Natal…”